26/05/2009

A quem se machuca

Inimigos são duas pessoas pertinho uma da outra. Só que de costas. Há duas situações inimigas dentro do amor. Pertinho e uma de costas para outra. Ambas ameaçam dar certo e não dar certo.
Os anos me ensinam que quando se ama, tanto se teme enfrentar a possibilidade de dar certo, cheia de prisões e tentáculos, como o risco de não dar certo e ficar rompida uma harmonia que poderia ter dado certo. E, se poderia vai doer se não viver.
Ambas as situações convivem em quem se ama. Porque "viver bem" não é dar certo. Dar certo é ser capaz de prosseguir apesar do desacerto. "Viver mal" não é necessariamente dar errado. Dar errado é não poder prosseguir.
Composto de partes inimigas é o amor. Ele só se enriquece dos cansaços incapazes da destruição. Ele só vive do imperfeito de cada confronto. Ele só é, quando vive ameaçado de deixar de ser. Caso contrário não seria: simplesmente deixaria de ser.
Os inimigos são duas pessoas pertinho uma da outra, mas de costas, porque se virarem se encontrarão. E é isso o que temem. São mais unidos, talvez, que amigos, um de frente para o outro, mas a metros ou quilômetros de distância e só por isso se entendem.
O medo de amar é o medo de estar perto demais, o que de certa forma escraviza. O engano de amor é estar longe, mas de frente, o que de certa forma atenua.
A coragem de amar é como a coragem de SER: é fazer os dois inimigos de costas um para o outro, virarem-se de frente para sentir hálito, olho, medo, força, ternura, muita raiva e muito carinho e aceitar tudo, por isso amar.
A falsidade do amor é permanecer de frente como amigos: pura e simplesmente se aceitando. Sem contradição. Sem a oposição capaz de ser vencida pela permanência do sentimento, a despeito do eu de cada um.
O medo de quem ama é o medo da relação profunda. Porque é nela que está a entrega. E tão profunda que não rompe, apesar das tragédias da superfície. E a superfície só faz a tragédia, para impedir que o eu contemple de frente a relação profunda.
A relação profunda implica o que não se destrói apesar das diferenças de cada um.
Na relação profunda está o desamparo e a necessidade tão pura que nunca pôde vir à tona. Na relação superficial está a fantasia, o eu idealizado, a armadura enfeitada de cada um.
Se transares ao nível da armadura, serás feliz no começo, na fase hipnótica do amor. Se transares ao nível profundo, talvez sejas até infeliz. Mas amarás. A infelicidade pode fazer-te virar as costas para o inimigo que amas. Poderá separar-te dele. Mas mesmo assim não será maior que o amor adivinhado e sentido, se a relação é profunda.
Não te vires de frente para o inimigo! Podes amá-lo. Ele vai adivinhar e tu também, o amor que está na peleja de quem ama. Não fiques tão de frente, mas tão longe de quem gostas. No que chegares perto, talvez deteste e seja detestado.
Amar é estar de costas. Gostar é estar de frente. O primeiro ultrapassa a inimizade que vive junta. Já o segundo vive da amizade fácil. Porém o gostar pode- se tornar amar... e vice-versa!
Amar é apesar de. É através. É a despeito, mas é com.
Amar é contra, mas perto e fundo. Mesmo de costas. É malgrado. É com ferida e cicatriz, mas íntegro.
Amar fundo é ter medo de virar de frente. Porque aí pode surgir, cristalina, a possibilidade de dar certo. E a entrega. Que é no fundo o que quem ama mais teme.

Artur da Távola

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